Tudo sobre a casa dos meus avós-campinas
- Silvia Maritani
- 27 de mai. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 31 de mai. de 2020
Na casa da minha avó havia três quartos principais e um quarto separado da casa, de tamanho normal, onde dormia minha avó porque o meu avô roncava. Mas nem sempre fora assim. Meu pai era o dono daquele quarto. Também na frente dele, desocupado, já esteve uma barraca de um personagem roxo que nós, crianças, gostávamos muito. Vamos nos ater a esse tempo, em que havia a barraca. Porque, sendo casa construída tijolo a tijolo pelo meu avô, já pôde existir várias disposições de quartos para cada membro da família, além de várias histórias de encontros, desencontros, dramas e felicidades familiares.
Eu me lembro de estar no quarto do meu primo - um quarto metaleiro, digamos assim, com direito a guitarra pendurada na parede e poster do Kiss por todos os lados, crânios, discos, bagunça e roupas pretas - sentada embaixo da janela, lendo "O Hobbit" e ao mesmo tempo pensando que eu precisava escrever sobre aquela casa, aqueles cheiros e aquelas pessoas.
Em algum lugar eu tenho guardado o caderno que comecei a usar naquele dia e vou colocar trechos aqui.
Não há história a ser contada. Isso é o pior. São impressões, imagens que eu desenharia se soubesse e elas falariam por si só.
O dia em que eu li O Hobbit, os dias de natal em que eu olhei pro céu em busca do Papai Noel - sendo que eu nem era tão nova assim -, o carinho que eu sempre recebi dos meus avós, da minha tia e dos meus primos - o ursinho que ganhei de presente do meu pai quando achei que não ganharia nada, os quadros antigos na sala, as noites em que assisti série com a minha tia no canal universal porque não existia netflix. Os cuscus da minha avó. Os dias deitada no sofá ouvindo os cds do capital inicial da minha tia, assistindo aos dvds da avril Lavigne da minha prima. Os amores platônicos. O dia do parque em que eu não aguentei ficar no brinquedo e pedi pra parar. A avenida enfeitada para o Natal. O super cachorro quente self service que meu primo nos levou. A laranja assassina (o dia em que meu vô nos ensinou a chupar laranja). Todas as histórias que já ficaram para trás e que eu quero resgatar em imagem, som, cheiro, porque foram legais demais pra ficarem no passado ou na minha cabeça e quem sabe alguém possa se divertir com isso.
As idas no carro modelo 82 do meu pai. A parada na estrada pra comer pão na chapa e tomar café . Os frentistas perguntando se era um gol 82.
A fachada da casa é feita de pedras, na calçada há uma grande árvore e o portão pega boa parte da entrada e assim que ficamos em frente a casa conseguimos ver as janelas da cozinha, a escada dos dois lados, a porta de acesso ao corredor e a porta de acesso a sala. O piso da sala é de madeira, agora ao lembrar, sinto que preciso passar ao menos um mês lá para vivenciar tudo aquilo de novo.
É muito complicado. Eu preciso ir até lá novamente para pode registrar tudo, com câmeras, gravadores, tudo. Não me contento com a minha memória, não me contento em ter crescido e deixado pra trás minhas férias de verão e inverno, que eu passava lá no aconchego dos meus avós.
A cozinha era grande e sempre tinha torradas, leite ninho e bananas. A sala era escura, por conta de uma estante antiga que hoje já não está mais lá; nessa estante ficavam as fotos da família. Fotos do meu pai e minha tia quando eram menores, fotos minha e do meu irmão numa festa junina da escola, fotos da minha prima bebê com um chapéu de palha e do meu primo, magrelo, com uma camiseta preta. Foto dos meus avôs novos e recém casados, fotos dos meus avós já velhos e numa viagem, talvez, ou na comemoração da bodas de ouro? No natal eu costumava deitar no colo do meu avô e assistir os filmes que passavam na globo. O último que me lembro foi Shrek. Era sensacional ficar lá, rodeada de tanto carinho.
Eu e minha prima sempre aprontávamos algo. Quando éramos pequenas brincávamos de gato mia assim que escurecia. Nos escondíamos no guarda-roupas gigante dos meus avós, tomamos esporro várias vezes por isso, porque eles tinham medo que quebrasse, e nós não estávamos nem aí. Nós brincávamos feito doidas e brigávamos também, principalmente, dirá unicamente, pelo amor da vó. Se ela dava algo pra mim, tinha que dar pra Mah também e se ela dava algo pra Mah, eu ficava bicuda. A Marina sempre foi mais argumentativa, digamos assim. Era uma treta sem fim, até que ficava provado que a Vó gostava igual de nós duas.
O quintal do meu avô tem a melhor uva. A casa da minha tia, que ficava nos fundos, tinha o melhor sofá com capa de plástico preta, com um aparelho de DVD onde eu passava muito tempo ouvindo os cds que ela tinha e os cds da minha prima. Não sei o porquê mas nunca tive interesse em pegar os CDs do meu primo para ouvir. Talvez porque eu achasse as fotos dos posters assustadoras. Kiss, era simplesmente muito assustador, mas foi por influência deles que um dia, com 13 anos, eu queria porque queria dividir a língua em duas partes. Nojento.
A magia do natal funcionava o ano inteiro naquela casa. Acho que os verdadeiros papai e mamãe noel são os meus avós. Descobri a verdade.
Manequins são bonequinhos de gigantes.