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Fronteiras, Visíveis e Invisíveis

  • O Anacrônico
  • 10 de jun. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 26 de jun. de 2020

É muito comum acharmos que só porque as coisas tem um conceito estabelecido e consolidado, que elas são naturalmente humanas. Mas ao analisarmos certos padrões nas mais de um milhão e duzentas mil espécies encontradas no planeta, que começaram a ser catalogadas tardiamente, apenas no século XVIII, percebemos similaridades em diversos aspectos da vida animal em nós e em nossas sociedades. Nesse sentido, esses conceitos não foram criados, eles foram no máximo traduzidos conceitualmente por nós. Não me canso de lembrar que a humanidade é apenas mais uma forma de vida que aqui neste corpo celeste vive, nem mais e nem menos que isso.

No século XIX, Charles Darwin trouxe a luz a revolucionária teoria da evolução das espécies, através dela pudemos enxergar que todos os seres vivos têm uma ancestralidade em comum, dependendo do seu lugar nas ramificações da árvore evolucionária, temos uma familiaridade maior ou menor. Por exemplo, nós humanos estamos muito mais próximos geneticamente dos lobos do que das iguanas, pois o primeiro, assim como nós, também é um mamífero, já o outro é um réptil. Por outro lado nós estamos mais perto dos répteis e das aves do que dos anfíbios, e mais chegados nos anfíbio do que nos peixes. Podemos ficar nisso até chegarmos a organismos unicelulares, que são os que têm o menor parentesco conosco na árvore evolutiva. Ao abranger esse conhecimento é possível destacar as semelhanças entre as mais variadas espécies e refletir sobre como o sistema autônomo nos comanda e nos torna tão iguais, mesmo sendo tão diferentes.

O sistema autônomo funciona como um regulador de necessidades básicas que mantém o corpo em funcionamento. É responsável pelas funções que não precisam de intelectualidade, ou seja, é a parte mais primitiva do ser. Sentir fome, sede, frio, calor, sono, fazer os órgãos funcionarem e o sangue circular, são algumas das muitas atribuições desse sistema. Quando nós somos avisados por ele que alguma necessidade precisa de atenção, temos de saná-la, obrigatoriamente, para garantir uma vida plena e confortável.

Outra coisa que é importante lembrar, compartilhado quase que universalmente com outros organismos, é o senso inato de autopreservação, que basicamente é o desejo inconsciente de continuar existindo, preservando-se dos perigos e agindo de qualquer forma e a qualquer custo para sobreviver. A dor e o medo podem ser lembretes para não repetirmos ações que outrora colocaram nossas vidas em risco. São tantas conexões com outras espécies que é normal que também tenhamos hábitos parecidos, um desses hábitos que eu gosto de observar é o territorialismo.

Os seres humanos ao longo de sua evolução, fizeram trocas sensoriais e físicas para se adaptarem cada vez melhor aos ambientes e aos desafios de um mundo em constante transformação, abrimos mão de certas habilidades por outras igualmente importantes que nos fizeram prosperar e chegarmos tão longe enquanto indivíduos e sociedade. Essas mudanças nos deixaram de certa forma bem equilibrados sensorialmente, temos uma boa audição, um bom olfato, um bom tato, um bom paladar e acima de tudo uma ótima visão. Indiscutivelmente, apesar do equilíbrio, somos seres predominantemente visuais, dependemos muito mais das informações ópticas do que qualquer outra. Muitas espécies também passaram por um processo evolutivo quase metamórfico, porém sacrificaram menos os seus sensores naturais em relação a nós. Apesar de termos boas qualidades sensoriais, alguns animais chegam a ser centenas ou milhares de vezes superiores, principalmente na visão noturna, na audição e no faro.

A criação de territórios pode ter influência direta tanto do sistema autônomo, quanto do senso inato de autopreservação. Servem para garantir alimentos, demarcando uma região próspera de caça ou de pastagem, para proteger as crias, tocas ou ninhos de possíveis ameaças e até mesmo como zona de procriação. Sendo assim a nossa percepção de território pode ser diferente da de outros animais, principalmente quando não podemos ver as fronteiras que estabelecem os seus limites. Nos acostumamos com barreiras bem visíveis, grandes, fortes, afiadas e cortantes demais para as ignorarmos e invadirmos inadvertidamente, ou premeditadamente os oásis alheios de paz. Alguns animais também constroem fortalezas físicas, mas seus principais muros são químicos e esses são invisíveis aos olhos humanos. Dentro de um bioma, todos os seres envolvidos em sua composição estão adaptados para sentir esses avisos de "proibida a entrada de estranhos". Os animais têm diversas formas de colar esses cartazes de "afaste-se ou eu te mato", através de glândulas especiais que espalham hormônios, pela urina, por sons, entre outros meios. Mas o fato é que nós não conseguimos ler esses recados tão sutis, justamente por que num passado distante, durante a evolução da nossa espécie, nós decidimos que era melhor ter imaginação, falar e criar coisas complexas, do que enxergar a noite, ouvir ou sentir partículas de cheiros a quilômetros de distância. Tudo tem seus prós e contras, mas creio que não cabe a mim medir se foi melhor ou pior para nossa espécie substituir esses sensores mais aguçados.

A maioria de nós só conhece as regras sociais humanas, como se fossemos os únicos a existir no planeta, porém outras sociedades existem, além disso são formadas por outras espécies de animais, assim como a nossa, essas também tem suas regras de convivência e de transitação de uma localidade para a outra. É um erro achar que os territórios e as fronteiras tenham sido inventados pelo ser humano, porém admito que as características egoístas e até opressoras para criá-los tenham muita humanidade. Eu mesmo já praguejei a minha própria espécie por ter dividido o mundo, impossibilitando a livre passagem entre as porções de terra, que antes eram de livre acesso, quando na verdade já estávamos envoltos numa grande trama global de territórios químicos invisíveis defendidos agressivamente por seus donos. Lugares com riscos reais de morte, individualmente e desarmados somos presas fáceis para diversos predadores, até mesmo animais menores que nós podem ter vantagem em seus habitats naturais, que infelizmente tivemos o azar de entrar por não entendermos os sinais de perigo. Esses territórios podem ser inclusive do cachorro do seu vizinho, que fica solto na rua exercendo sua "macheza" alfa, do pássaro que fez um ninho na árvore do seu quintal e não quer que você se aproxime, dos gatos que brigam todas as noites nos telhados das casas, não precisamos necessariamente sair das urbes para cruzar essas fronteiras interespécies. Hoje eu compreendo que não somos os inventores das divisas e não merecemos esse título, estamos apenas dando continuidade a um processo que já acontece há milhões de anos, muito antes de nós chegarmos aqui e continuará mesmo depois que partirmos.

Para finalizar, sinto que mesmo quando pensamos que estamos osmóticos no ambiente, podemos ter surpresas ao descobrir que não sabemos de nada. Além de conhecermos e respeitarmos as leis, as regras, os direitos e deveres, existe um poder paralelo que delimita certas liberdades que nos são garantidas constitucionalmente. Máfias, gangues, milícia, traficantes, nossas cidades estão inundadas de sub territórios ilegais que podem ser tão perigosos e mortais quanto encontrar uma ursa com filhotes numa floresta. E por incrível que pareça esses locais também estão marcados, estabelecendo fronteiras ou avisando de quem é o domínio. Às vezes a simples observação de uma pichação, um par de tênis enrolado nos fios de alta tensão, coisas que são tão comuns que chegam a ser imperceptíveis no dia a dia, mas que podem trazer uma simbologia territorial e talvez ao identificá-las você pode evitar de entrar num lugar que você não gostaria de estar. Sempre estamos cruzando territórios e fronteiras, visíveis e invisíveis, seguras ou inseguras, de humanos ou de animais. Veja, até a natureza cria barreiras naturais bem robustas como rios, montanhas, desertos e densas florestas, e esses locais isolam não só os homens entre si mas também os animais, mantendo assim o equilíbrio da localidade. Não é e nunca foi possível sermos livres de verdade, sempre fomos observados de perto por criaturas que queriam nos devorar, e não só isso, também sempre observamos criaturas que queríamos comer. Então na mesma medida que o senso inato de autopreservação nos afastava por segurança, o sistema autônomo, por necessidade, através da fome nos unia. E todas as espécies territorialistas, menos a nossa, que delimitam áreas, só o fazem para subsistir e proteger os seus. Não por maldade e nem por ganância, apenas para sobreviver, pois a inocência os exime dessa consciência e esses sim são conceitos criados e de uso exclusivo da humanidade.

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