Literatura Divina
- O Anacrônico
- 17 de jun. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 18 de jun. de 2020
Já faz algum tempo que eu estou escrevendo diariamente.
Fico pesquisando e assimilando as informações para transformá-las em histórias, faço isso o dia inteiro.
Ei, espere um momento! Se eu estou aqui, quem está vivendo a minha vida?
Enquanto eu estou escrevendo essas palavras, quem está no controle do meu corpo?
Será que os rumores sobre os escritores são verdadeiros, dizem que eles não existem.
Dizem que os escritores só vivem em suas obras, fora delas são apenas corpos vazios.
Talvez sejam mesmo, pois enquanto estão no processo de criação não interagem, não socializam e nem sequer lembram que o mundo real existe.
Presos ali, naquela realidade alternativa na qual eles mesmos são os deuses.
Criam, destroem e recriam mundos e sociedades guiados por suas predileções particulares e duvidosas.
Para ser sincero tem horas que eu fico confuso sobre a natureza dos escritores.
Fico pensando se realmente são criadores onipotentes ou meras criaturas servis.
Pode ser que os contos em si sejam as divindades, e aqueles que os escrevem são apenas as ferramentas de criação, possuídos pela introspectiva criatividade.
Hipnotizados e fissurados por uma boa continuação, se entregam completamente ao desenrolar da trama.
Ansiosos e empolgados para saber quais serão os destinos dos personagens.
Digo isso pois duvido que algum autor seja onisciente suficientemente para saber de antemão cada caminho de sua história.
Não é algo que já aconteceu e apenas está sendo transcrito, está acontecendo em tempo real, em cada palavra escrita.
Na maioria das vezes os autores usam mapas que mostram um ponto de partida e um possível ponto de chegada.
Mas a jornada entre o início e o fim é incerta e desconhecida, inclusive podendo mudar o passado e consequentemente alterando o futuro.
Com certeza os escritores são seres atemporais em todos os sentidos.
Andam livremente pelas tramas do tempo e do espaço, quase que como entidades cósmicas.
Visitam e se apoderam de civilizações antigas, escrevem sobre os anseios de suas próprias épocas, além de viajarem e especularem com prováveis futuros distantes.
Circulam por múltiplos universos e frequentemente se deparam e interagem com as mais fantásticas formas de vida.
Nenhum conceito da física representa uma barreira para a mente humana.
É isso, a mente! Somente ela mente para a gente.
Está aí, e se eu mesmo for apenas um personagem desses universos literários, fruto da imaginação de outro ser?
Um desses seres criadores, um autor por exemplo.
Acho até plausível que eu seja apenas um punhado de palavras escritas a caneta num guardanapo de bar.
E que eu só existo enquanto alguém me lê, quando param eu durmo e fico esperando até que alguém me leia novamente para despertar.
E se um dia eu dormir e nunca mais acordar, o que aconteceu, será que o guardanapo pegou fogo?
É difícil entender o que realmente está acontecendo nesse momento, só sei que enquanto eu estou aqui eu não estou aí do lado de fora.
Se os escritores existem eu não sei, mas creio que se existirem são seres que vivem num espaço/tempo a parte do resto humanidade.
Não existem durante todo o processo de criação, e ao publicarem suas obras passam a existir em múltiplos locais simultaneamente.
Além da eternidade conquistada merecidamente por sacrificarem sua existência física em prol da imortalidade metafísica.
Já me confundi de novo, essas características são típicas dos deuses!
Enfim, se eu estou aqui, quem está no meu corpo?
E você, lendo este texto agora, você é você, ou durante esta leitura você sou eu?
Pois é certo que eu sou estas palavras escritas aqui, logo, ao lê-las, você me colocará para dentro da sua cabeça.
Pensamentos gerados por impulsos elétricos dentro do meu cérebro, transformados em um agrupamento de símbolos pelas minhas mãos, as letras, que viajaram e chegaram até o seu cérebro e estão te fazendo pensar sobre o assunto.
Sei lá, é no mínimo mágico pensar que isso é possível e que até mesmo quem não é um grande pensador, como eu, pode, mesmo que mediocremente, alcançar outras mentes e fazê-las refletir.
E dependendo da intensidade da escrita e da identificação dos leitores com ela, o escritor pode morar por anos na imaginação de quem o leu, às vezes a vida inteira.
Já entendi, que aqui na escrita reside a minha porção divina, minha parte imortal e poderosa.
Só que a eternidade exige um hospedeiro mortal, no caso um escritor, ou alguém que no mínimo saiba ler e escrever.
Finito e infinito compartilharão suas energias até que um dia o corpo físico vire poeira, e sobre apenas a consciência em forma de palavras escritas, que resistirão ao severo tempo e durarão para além da compreensão da existência humana.
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