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Tatuagens e Chimpanzés

  • O Anacrônico
  • 24 de jun. de 2020
  • 6 min de leitura

É muito normal que as pessoas tenham um animal predileto, no sentido de se identificar e de achar até mesmo semelhanças físicas e temperamentais com os mesmos. Não estou falando sobre animais de estimação, ou os famosos pets, quero me referir aos animais selvagens. Geralmente esses animais só podem ser observados em duas ocasiões, ou cativos no zoológico ou livres na natureza. Qualquer outro tipo de visualização não é empírica, ou seja, não foram no habitat natural e nem em cativeiro. As experiências visuais e até sonoras são feitas através de desenhos, esculturas, fotografias e vídeos. Mesmo nunca tendo a chance de vê-los, ou sequer existirem no continente no qual elas moram, algumas pessoas podem se sentir verdadeiramente atraídas e ligadas por alguns animais. Então toda essa admiração surge por intermédio de imagens e sons que chegaram até essas pessoas e viraram estímulos. Claro que hoje em dia essas informações chegam com muita facilidade através dos meios de comunicação modernos, sobretudo a televisão e a internet. Essas plataformas, depois dos meios de transporte de ponta, são os principais elos da globalização definitiva. São elas que possibilitam que as pessoas conheçam o mundo inteiro sem sair de casa, e com isso elas também têm a oportunidade de conhecer os animais dos locais mais longínquos do planeta. Apesar de ser de modo virtual, eu acho plenamente compreensível as pessoas se cativarem por animais de outros continentes. E é cabível imaginar que nossos ancestrais, nas muitas diásporas que fizeram ao longo das eras, tiveram contato direto com predadores implacáveis, como leões, ursos e lobos. E ainda competiram entre si por territórios de caça e por muitas vezes entraram em atritos mortais com o intuito de prevalecer um sobre o outro. Acredito que talvez tenhamos memória genética, e por isso temos um respeito inato por alguns animais. E ao admirá-los por sua beleza, força e imponência, mesmo que através de uma tela, todos esses sentimentos reacendem dentro de nós.


No mundo existem centenas de milhares de espécies animais, das mais variadas formas e tamanhos, divididas em quatro continentes e separadas geograficamente por vastos oceanos, longas cadeias montanhosas, rios volumosos, desertos escaldantes e florestas impenetráveis. Seres aquáticos, rastejantes, voadores e terrestres. Ao meu ver existe um certo padrão na escolha de um animal "guia" e pode ser explicado por meio da biologia e a árvore evolucionária. Não é via de regra, mas a maioria das pessoas tendem a assimilar e compreender melhor os indivíduos do mesmo ramo evolutivo, no nosso caso os mamíferos. Às vezes a empatia com um animal específico é tão grande, que as pessoas costumam tatuá-los em seus corpos de forma a eternizar suas predileções, como se ao carregarem consigo esses símbolos, também levassem junto todas as potencialidades e qualidades dos próprios animais representados. Para tentar verificar se de fato a proximidade evolutiva faz sentido, fiz uma rápida pesquisa no Google na qual digitei "tatuagens de animais" e selecionei a opção imagens, uma busca bem genérica porém abrangente. Limitei-me a verificar apenas a primeira página, que contava com cerca de duzentas e dez imagens, contudo, somente cento e sessenta e seis conduziam com o tema descrito. Dessas, cento e trinta e quatro eram de mamíferos, vinte eram aves, cinco eram insetos ou artrópodes, quatro eram répteis, três eram de peixes, duas eram de dinossauros e uma era de um animal mitológico. Os lupinos indiscutivelmente são os mais queridos pelos adeptos, entre lobos, raposas e cães contabilizaram cerca de sessenta tatuagens. Já em segundo lugar, os felinos totalizaram cinquenta e dois desenhos, entre leões, tigres, gatos e outros. Também tiveram representatividade ainda entre os mamíferos, ursos, elefantes, girafas, cervídeos, baleias e morcegos. Do lado das aves, águias, corujas e corvos. No mundo submarino dos peixes, carpas e tubarões. Cobras, camaleões e tartarugas entre os répteis. Escorpiões, borboletas, vespas e aranhas entre os insetos ou artrópodes. E finalmente um dragão representando os animais míticos. Ao observar esses números fica nítido o laço estreito entre nós humanos e os outros mamíferos, justamente pela proximidade evolutiva. É muito mais fácil nos identificarmos e interagirmos com eles do que qualquer outro animal de outros ramos da evolução, como os insetos, peixes, répteis e aves por exemplo.


Dentro dessa história toda, uma coisa me deixou curioso. Ao desenvolver esse assunto eu falei sobre proximidades evolutiva e genética, e sobre como os semelhantes se atraem. Porém o mais engraçado é que os animais mais parecidos conosco dentro da árvore evolucionária, nossos primos primatas, não tiveram sequer uma representação entre tantos animais, lembrando que nós mesmos somos uma espécie de primata. Além disso, eu não conheço muitas pessoas que se identificam ou que se sintam confortáveis ao serem comparadas a outros primatas. Principalmente os símios, logo eles, seres tão versáteis e sofisticados, capazes de impressionantes feitos cognitivos e que compartilham até noventa e oito por cento da sua base genética com os seres humanos modernos. De todas as milhões de formas de vida que vivem nesse planeta, as mais intimamente ligadas a nossa são primeiramente os chimpanzés, depois os gorilas e posteriormente os orangotangos. Somos os últimos da família hominidae, todas as outras espécies dessa família já foram extintas, menos nossas quatro. Isso por si só já deveria ser motivo suficiente para uma elevada empatia para com eles.


Talvez essa recusa em reconhecer nossos primos primatas, sobretudo os símios, como animais inteligentes e semelhantes, tem haver com o negacionismo religioso em contraponto aos estudos sobre a evolução das espécies. As religiões têm suas próprias formas de explicar a vida e seus motivos, e de certa forma a ciência quebrou esse ciclo teocêntrico. Foi e ainda é difícil para algumas pessoas, especialmente as mais religiosas, aceitarem que o ser humano não é um ente especial, criado por um deus a sua imagem e semelhança há cerca seis mil anos atrás, com propósitos e destinos definidos e imutáveis. Somos o que somos por uma sequência aleatória e ininterrupta, que se iniciou há milhões de anos no passado, de tentativas, erros e acertos de organismos vivos apenas tentando sobreviver e prosperar. Que evoluíram para milhões de outras formas até chegarmos nesses seres pensantes que ficam se questionando o por que das pessoas se identificarem com outras espécies animais. Sinto que a questão religiosa, de certo modo, ainda age inconscientemente suprimindo certas verdades incômodas que basicamente se opõe ao criacionismo. Posso estar errado, mas é uma possibilidade plausível pensarmos como outros animais, mesmo tendo fortes simbologias pagãs, são bem aceitos pelas pessoas, já que segundo a mitologia cristã todos os seres são criações divinas, e é certo que todos têm suas belezas próprias e são dignos de contemplação e admiração sem maiores motivos para isso. Mas os primatas foram os únicos que realmente incomodaram a igreja e seu antropocentrismo ultrapassado, principalmente pós Darwin, justamente por sermos tão iguais a eles e por ser cientificamente incontestável que na verdade "Adão e Eva" eram apenas "macacos". Por isso hoje em dia é mais comum vermos as pessoas celebrarem a inteligência tatuando uma coruja, ao invés de um chimpanzé, que é infinitamente mais inteligente que uma ave. É normal ao se sentirem fortes e vigorosos tatuarem um lobo ou um leão, e não um gorila, que pode ser até dez vezes mais forte que um homem e é capaz de levantar até duas toneladas. Para fins de comparação, em algumas culturas politeístas, não judaico-cristãs, os próprios animais são os deuses, incluindo até mesmo seres tão subestimados como os ratos, têm o seus lugares garantidos nos panteões divinos. Essas tradições ainda podem ser vistas atualmente em alguns lugares da Ásia.


Para finalizar, todos temos o direito de nos identificarmos e de escolhermos um, ou mais animais para nos definir e guiar certas ações e atitudes. Mas devo dizer que muitas vezes nossas escolhas estão pré definidas por conta de séculos de pensamentos retrógrados. E por mais que a verdade já tenha sido trazida à luz do conhecimento, ainda sentimos o peso dos preceitos e dos dogmas religiosos que outrora eram a única lei e ainda ecoam até hoje. Então, da próxima vez que alguém te perguntar qual é o seu animal favorito, pense com mais carinho nos nossos primos primatas, eles podem ser a resposta para muitos questionamentos e anseios da humanidade. Até porque, se houvesse uma fila de animais para serem os próximos senhores do planeta, caso a existência humana desaparecesse da face da Terra, com certeza em primeiro lugar estariam os chimpanzés, que nada mais são do que um reflexo primitivo da nossa própria espécie. Mais próximo que isso só se nós fossemos eles ou eles nós.




2 opmerkingen


O Anacrônico
27 jun 2020

No ocidente é bem difícil encontrarmos fábulas sobre primatas, mas na Ásia é mais normal, como a fantástica saga chinesa do Rei Macaco, que por sinal é uma das mais importantes daquele país. Essa história inspirou um certo japonês de nome Akira Toryama ao criar um mangá de nome Dragon Ball, sendo Goku, o personagem principal do desenho, uma adaptação do próprio Rei Macaco. Também é possível acharmos lendas sobre primatas na Índia, pricipalmente por que o panteão indiano é formado por milhares de deuses e muitos deles são animais, incluindo os macacos e símios.

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silvia.maritani
27 jun 2020

Acredito que para nós, seres humanos, a beleza está no que é diferente de nós é a magia também está aí. Tatuar uma coruja como símbolo do conhecimento é mais mágico do que tatuar um chimpanzé justamente pela falta de proximidade. As qualidades permanecem grandes porque são ocultas. Não por falta de conhecimento e sim porque queremos que permaneça assim. Mas acredito que, como você disse, a religião tenha um papel muito importante nessa mentalidade e com certeza os primatas são bem próximos e tão bons (ou melhores, na minha opinião) quanto nós. Fora a esfera cultural, que trás histórias e lendas sobre diversos animais, menos os primatas. Não me lembro de uma boa história sobre eles, a não s…

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